Page 60 - Revista Ato_Ano_2_n_1
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AngústiaAs errâncias de Franz Kafka
desde o excesso do Urvater que sofreu. Muito cedo em
sua vida, na ausência de uma autoridade legítima, vemos
erguer-se monstruosamente a sombra espessa do supereu
que cai sobre ele, melancolizando sua curta existência.
Kafka, por 40 anos, sem uma referência que o guie e
assolado constantemente por um “invisível tribunal”,
sem lugar, em um mapa-múndi ocupado, invadido pelo
Outro, erra na angústia de sua clausura, preso do lado de
fora do mundo. Mas Kafka não desiste e segue errante em
busca de uma saída. Dos postos de resistência, a escrita
é a via privilegiada e chega a fazê-lo dizer: “Sou apenas
literatura.” No afã de registrar tudo, preenche milhares
de páginas em contos, diários e correspondências, esboça
romances e desenhos, interminavelmente.
Kafka confessa em seus Diários: “A minha
vida é o hesitar antes do nascimento (Das Zögernvor
der Geburt).” (24/01/1922, Difel, p. 360). E nesse hesitar
instala-se a errância de uma vida escrita. Essa região —
terra de erro que não é uma região de fato,
onde faltam as condições para uma verdadeira permanência,
onde tem que se viver numa separação incompreensível,
numa exclusão da qual se está excluído como se está excluído
de si mesmo, nessa região que é a do erro porque nada
mais se faz senão errar sem fim, subsiste uma tensão, a
própria possibilidade de errar, de ir até o fim do erro, de se
aproximar de seu limite, de transformar o que é um caminho
sem objetivo na certeza de um objetivo sem caminho.
(BLANCHOT. Kafka e a exigência da obra. In: BLANCHOT.
O espaço literário 1987, p. 72).
60 Revista da ATO – escola de psicanálise, Belo Horizonte, Inibição, sintoma, angústia, Ano II n. 1, pp. 59-68, 2016
desde o excesso do Urvater que sofreu. Muito cedo em
sua vida, na ausência de uma autoridade legítima, vemos
erguer-se monstruosamente a sombra espessa do supereu
que cai sobre ele, melancolizando sua curta existência.
Kafka, por 40 anos, sem uma referência que o guie e
assolado constantemente por um “invisível tribunal”,
sem lugar, em um mapa-múndi ocupado, invadido pelo
Outro, erra na angústia de sua clausura, preso do lado de
fora do mundo. Mas Kafka não desiste e segue errante em
busca de uma saída. Dos postos de resistência, a escrita
é a via privilegiada e chega a fazê-lo dizer: “Sou apenas
literatura.” No afã de registrar tudo, preenche milhares
de páginas em contos, diários e correspondências, esboça
romances e desenhos, interminavelmente.
Kafka confessa em seus Diários: “A minha
vida é o hesitar antes do nascimento (Das Zögernvor
der Geburt).” (24/01/1922, Difel, p. 360). E nesse hesitar
instala-se a errância de uma vida escrita. Essa região —
terra de erro que não é uma região de fato,
onde faltam as condições para uma verdadeira permanência,
onde tem que se viver numa separação incompreensível,
numa exclusão da qual se está excluído como se está excluído
de si mesmo, nessa região que é a do erro porque nada
mais se faz senão errar sem fim, subsiste uma tensão, a
própria possibilidade de errar, de ir até o fim do erro, de se
aproximar de seu limite, de transformar o que é um caminho
sem objetivo na certeza de um objetivo sem caminho.
(BLANCHOT. Kafka e a exigência da obra. In: BLANCHOT.
O espaço literário 1987, p. 72).
60 Revista da ATO – escola de psicanálise, Belo Horizonte, Inibição, sintoma, angústia, Ano II n. 1, pp. 59-68, 2016