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AngústiaAs errâncias de Franz Kafka

370). Pouco tempo depois, o corpo finalmente responde
com a tuberculose.

Mas enquanto a morte não chega, Kafka parece
pedir por uma arma que não teve na infância — uma aposta
terceira que o arrancasse do exílio, da duplicidade, um
chamado paterno que o conduzisse ao mundo dos homens:

Um pouco tonto, cansado de patinar e cair serra abaixo. Mas
ainda existem armas, tão raramente empregadas; custa-me
tanto chegar até elas porque desconheço as alegrias de seu
emprego, não pude aprender quando era pequeno. Não foi só
“por culpa do meu pai” que não aprendi a usá-las, mas por-
que também queria perturbar a “tranquilidade”, o equilíbrio,
e por isso não podia permitir que uma nova pessoa nascesse
em outra parte, quando eu me esforçava aqui por enterrá-la.
É claro que também assim remeto à culpa, porque, por que eu
queria fugir do mundo? Porque “ele” não me deixava viver no
mundo, no seu mundo. De fato não devo emitir um juízo tão
preciso, pois sou agora um cidadão deste outro mundo, que
se parece com o mundo normal assim como o deserto com a
terra cultivada (durante quarenta anos errei distanciando-me
de Canaã). Olho para trás como um estrangeiro; embora tam-
bém, nesse outro mundo — e isto me segue como uma he-
rança paterna — sou o mais ínfimo e o mais temeroso (...). Eu
não deveria sentir-me agradecido apesar de tudo? Por acaso
era tão evidente que eu encontraria o caminho até aqui? Não
poderia o “banimento” [exílio] de um lado juntamente com
a rejeição deste, terem-me esmagado na fronteira? O poder
do meu pai não é tal que nada (eu não, com certeza) poderia
opor-se ao seu decreto?

E sua escrita nessa anotação vai ganhando for-
malmente o desenho de um labirinto errático:

62 Revista da ATO – escola de psicanálise, Belo Horizonte, Inibição, sintoma, angústia, Ano II n. 1, pp. 59-68, 2016
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