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Barbara Guatimosim

De fato, é como fazer uma peregrinação ao deserto ao con-
trário, aproximando-me continuamente do deserto e alimen-
tando experiências infantis (sobretudo no que concerne às
mulheres) de que “talvez me encontre afinal em Canaã”,
quando já faz muito tempo que estou no deserto, e essas es-
peranças são apenas miragens do desespero, sobretudo nesta
altura em que, mesmo no deserto, sou a mais miserável das
criaturas e Canaã se me parece como a única Terra Prometi-
da, já que não existe para os homens uma terceira terra.(Dia-
rios, 28/01/1922, Emecé, p. 393-394).

Não há em Kafka uma tentativa de construir um
mundo novo. Sua errância busca muito mais um terceiro
caminho, uma terceira região. Um lugar outro para ele é
muito mais uma mudança de posição. Um banquinho, um
tripé que o sustente, uma lei que o estabilize, sem que seja
aquela espera que o condena a ficar diante da Lei do Outro.
Dito por ele mesmo:

“Estabilidade. Não quero evoluir em um determinado sentido, Angústia
quero mudar de lugar; isto, na verdade, é aquele ‘desejo de
ir para outro planeta’; bastaria que eu pudesse existir perto 63
de mim, bastaria poder considerar o lugar onde me encontro
como outro lugar.” (KAFKA. Diarios, 24/01/1922, Emecé, p.
391.)

Não parece haver em Kafka perspectiva de vida
em um novo mundo imaginário, ficcional, como para ele
também só há uma “terceira região”, constantemente
criada, nunca assegurada, que bem pode ser o que ele
expressa como “mudar de lugar para existir perto de mim”.
A única garantia e certeza é que há o limbo, a condição
zumbi, pavor maior, mas que não deixa de ser também um

Revista da ATO – escola de psicanálise, Belo Horizonte, Inibição, sintoma, angústia, Ano II n. 1, pp. 59-68, 2016
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