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efeitos da transmissãoO brilho inesperado de um desejo ou Kafka, um desejo indestrutível

não autorização; ele “se delata por alterar ou adiantar-se a
toda lei” (BLANCHOT, 1991, p. 324); o seu próprio passo
revela-lhe o infranqueável. E com isso, ao final, mais uma
vez, com o passo transgressivo de sua fuga com Dora, ele
chama pela interdição, pela lei, com seu quarto pedido de
casamento, resposta que lhe vem, dias antes de morrer,
pelo “não” do pai de Dora. Eis a questão que orienta as
reflexões de Blanchot, que parece entender aqui a lei em
um sentido moral2:

Não deixa de surpreender-nos que, inclusive antes que
o matrimônio com Dora Dymant seja recusado pelo
conselho supremo, Kafka faça caso omisso e, opondo-se às
conveniências sociais, ajeite com a adolescente uma espécie
de vida comum (BLANCHOT, 1991, p. 324).3

Porém, considerando os efeitos imperativos do
supereu que incidem no caso de Kafka, a dita e suposta
“transgressão” pede também a leitura a partir de uma
contextualização primada por uma prudência específica: o
tipo de relação de Kafka com a lei (leis), o Outro (outros)
e a autoridade. Kafka se via fora da lei do pai, com parcos
recursos simbólicos, e, por isso mesmo, precisava obedecer
tanto, esperando do outro não só autorização de seus atos,

2 Para entender o que aqui está em jogo é preciso distinguir moral e ética
como faz Lacan. Logo no início de seu Livro 7, lemos: “Falando de ética da
psicanálise escolhi uma palavra que não me parece por acaso. Moral, pode-
ria ainda ter dito. Se digo ética, verão por quê, não é pelo prazer de utilizar
um termo mais raro (LACAN, 1988, p. 10) .

3 Na literatura sobre Kafka encontramos o sobrenome de Dora escrito Dia-
mant e também Dymant.

158 Revista da Ato – Escola de psicanálise, Belo Horizonte, Angústia, Ano I n. 0, pp. 151-165, 2015
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