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Bárbara M. B. Guatimosim

mal-acabado como homem e que, portanto, as bem mais
jovens podiam estar muito mais próximas dele e da pureza
que prezava no amor do que as já então mulheres feitas.
A última companheira de Kafka, Dora Diamant, tinha 19
anos quando o conheceu em 1923. Franz tinha o dobro de
sua idade. Ela assim o descreve:

Ele era alto e magro, caminhava a passos largos, tinha efeitos da transmissão
a pele escura, tanto que pensei, primeiro, que ele não
fosse europeu, mas que tinha sangue indiano. Tinha por
vezes o andar um pouco vacilante, mas permanecia com a
postura sempre muito correta. Apenas costumava inclinar
ligeiramente a cabeça, semelhante àquela atitude que o
solitário constantemente tem em relação a qualquer coisa de
misterioso que lhe seja exterior. Dava a impressão de estar à
espreita, mas acrescentava também nesse gesto uma grande
ternura que eu interpretei mesmo como sendo um desejo de
ir em direção aos outros, como se quisesse dizer: “Só. Eu não
sou nada. Existo somente se me encontro em relação com o
mundo exterior” (DIAMANT, 2011a, s/p) .

Na companhia de Dora, Kafka conseguiu fazer o

que até então não fizera com mulher alguma:

desligou-se da família, desligou-se de Praga e foi viver com
ela em Berlim. Viveram juntos, em precárias condições
econômicas, mas num clima de tranquilidade íntima e
felicidade (KONDER, 1966, p. 80).

Franz que vivia assolado por fantasmas, diz 153
ao amigo Brod que havia escapado deles com a ida para
Berlim. “Eu escapei por entre os dedos deles. Essa partida
para Berlim foi magnífica, eles agora me procuram, mas não
me encontram, pelo menos por enquanto” (KAFKA apud

Revista da Ato – Escola de psicanálise, Belo Horizonte, Angústia, Ano I n. 0, pp. 151-165, 2015
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