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efeitos da transmissãoO brilho inesperado de um desejo ou Kafka, um desejo indestrutível

LEMAIRE, 2006, p. 222). Dora também foi testemunha
desse desejo de nascer de novo para a vida e para a literatura:

Ele não cessava de dizer: “Como eu gostaria de saber se
escapei dos fantasmas!”. Com esse apelo, resumia tudo
aquilo que lhe havia atormentado antes de sua chegada a
Berlim (...). Para libertar sua alma desses “fantasmas”, ele
queria queimar tudo aquilo que havia escrito. Eu respeitei sua
vontade e, debaixo dos seus olhos, enquanto ele repousava,
doente, em seu leito, queimei alguns de seus textos. Aquilo
que verdadeiramente gostaria de escrever, Franz faria
somente depois de conquistada sua “liberdade”. A literatura
era qualquer coisa de sagrado para ele, de absoluto, de
intocável. (...) quando se tratava de literatura, ele se tornava
intransigente e não fazia concessões, pois era toda a sua
existência que estava envolvida (DIAMANT, 2011b, s/p).

Kafka procurava solo firme, raízes e um judaís-
mo mais legítimo do que tinha encontrado junto ao pai.
Puah Ben-Tovim, professora de hebraico de Franz, dizia
que ele queria saber tudo sobre os judeus orientais. Queria
trabalhar a terra, mas devido as suas condições físicas “o
estudo do hebraico acabou tornando-se seu laço simbólico
com a Palestina” (BEN-TOVIM apud LEMAIRE, 2006, p.
224).

Dora, que era fluente em hebraico e em iídiche,
encontrou um homem descrito pela mestra como “um
afogado a debater-se, pronto a pendurar-se em quem quer
que se aproximasse o bastante para que ele o agarrasse”
(BEN-TOVIM apud PAVEL, 1986, p. 418). Para o biógrafo
Ernest Pawel, “a presença silenciosa de Kafka, sua aparência

154 Revista da Ato – Escola de psicanálise, Belo Horizonte, Angústia, Ano I n. 0, pp. 151-165, 2015
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