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Bárbara M. B. Guatimosim
mas até mesmo a confirmação de sua existência. Por toda
sua vida, Kafka buscou uma fuga e uma saída agarrando-se
à literatura, à escrita de cartas, aos seus Diários.
Além da contingência de encontros reais, como o
que aconteceu com Dora, o enfrentamento com o supereu
para um sujeito exige o tempo de muitas repetições. Apesar
de Kafka não estar falando para um analista, o campo aberto
da escrita diária faz com que o escritor seja também leitor
privilegiado. Na lucidez reflexiva de Kafka, temos um leitor
atento ao que nele insiste e pede tratamento. E em Kafka,
o que sempre está em tratamento, sob diversas formas, é o
supereu. Lacan nos diz aqui como se trata a instância que
paralisa o desejo:
... trazendo cem vezes ao tear o nosso trabalho, o sujeito, efeitos da transmissão
confessando a sua história na primeira pessoa, progride na
ordem das relações simbólicas fundamentais em que tem de
encontrar o tempo, resolvendo as paradas e as inibições que
constituem o supereu. É preciso o tempo (LACAN, 1983, p.
323).
Depois de tanto testemunhar sua dor, investigar 159
e tratar seus impasses por escrito, alguma coisa da ordem
de um trabalho analítico parece ter se processado em
Kafka. “A rabiscação (Durch das Gekritzel) [garatuja] me
serve para fugir diante de mim mesmo, mas no ponto final
(Schlußpunkt) eu me alcanço. Não posso escapar a mim
mesmo” (JANOUCH, 1983, p. 222).
TemosentãoumTourdeForcesobredeterminado.
Em 1923, aos 40 anos, Franz Kafka ainda carrega o “mérito”
Revista da Ato – Escola de psicanálise, Belo Horizonte, Angústia, Ano I n. 0, pp. 151-165, 2015
mas até mesmo a confirmação de sua existência. Por toda
sua vida, Kafka buscou uma fuga e uma saída agarrando-se
à literatura, à escrita de cartas, aos seus Diários.
Além da contingência de encontros reais, como o
que aconteceu com Dora, o enfrentamento com o supereu
para um sujeito exige o tempo de muitas repetições. Apesar
de Kafka não estar falando para um analista, o campo aberto
da escrita diária faz com que o escritor seja também leitor
privilegiado. Na lucidez reflexiva de Kafka, temos um leitor
atento ao que nele insiste e pede tratamento. E em Kafka,
o que sempre está em tratamento, sob diversas formas, é o
supereu. Lacan nos diz aqui como se trata a instância que
paralisa o desejo:
... trazendo cem vezes ao tear o nosso trabalho, o sujeito, efeitos da transmissão
confessando a sua história na primeira pessoa, progride na
ordem das relações simbólicas fundamentais em que tem de
encontrar o tempo, resolvendo as paradas e as inibições que
constituem o supereu. É preciso o tempo (LACAN, 1983, p.
323).
Depois de tanto testemunhar sua dor, investigar 159
e tratar seus impasses por escrito, alguma coisa da ordem
de um trabalho analítico parece ter se processado em
Kafka. “A rabiscação (Durch das Gekritzel) [garatuja] me
serve para fugir diante de mim mesmo, mas no ponto final
(Schlußpunkt) eu me alcanço. Não posso escapar a mim
mesmo” (JANOUCH, 1983, p. 222).
TemosentãoumTourdeForcesobredeterminado.
Em 1923, aos 40 anos, Franz Kafka ainda carrega o “mérito”
Revista da Ato – Escola de psicanálise, Belo Horizonte, Angústia, Ano I n. 0, pp. 151-165, 2015