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Bárbara M. B. Guatimosim efeitos da transmissão

Podemos ainda considerar que Kafka não des-
conhecia a gravidade de sua situação. Em 1922, já encon-
tramos no Diário: “Na escrita da minha vida ainda se fa-
zem as contas como se a minha vida só começasse amanhã.
E entretanto chego ao fim” (KAFKA, 2002, p.368). O ato
na direção em que seu desejo sempre apontou, desde o
encontro com Felice que também o chamara a Berlim, não
podia ser mais procrastinado. “Berlim é o antídoto con-
tra Praga” (PAWEL, 1986, p. 419). Comenta Pawel que,
“àquela altura, a doença havia despojado a vida das am-
biguidades e a reduzia aos elementos essenciais” (PAWEL,
1986, p. 424). Comentamos nós que, além de produção de
sofrimento gozoso, a doença pode ter tido, em Kafka, efei-
tos de castração que o lançaram na via do desejo.

Segundo Blanchot, Kafka em seu vínculo com
Dora, mais uma vez segue repetindo, insistindo em mais
um dos noivados impossíveis, no qual se reproduz sua
impotência infinita de casar-se e constituir família e de
ser mais um sócio na comunidade dos homens. Pelas
respostas de não autorização que recebe, parece haver
uma designação pelo negativo de sua condição, no fato de
estar em exclusão com relação à lei, onde paradoxalmente
ele aí se reconhece, mais de uma vez, como fora da lei.
O limite intransponível acaba, então, por se revelar na
própria transgressão. Para Blanchot, Kafka, “em seu jogo
trágico com a lei (...) provoca as provocações”, insufla a

Revista da Ato – Escola de psicanálise, Belo Horizonte, Angústia, Ano I n. 0, pp. 151-165, 2015 157
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